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“Temos direito à igualdade quando a diferença nos inferioriza, e temos direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza”

(Boaventura de Souza Santos)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

ALARMISMO E CENSURA: A polêmica em torno dos livros infantojuvenis do PNAIC. (por Taicy Ávila)
Vem causando polêmica a distribuição de um livro de literatura infantojuvenil, através do PNBE (Programa Nacional de Bibliotecas Escolares) que veio num dos acervos do PNAIC (Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa).O referido livro chama-se “Enquanto o sono não vem”, foi escrito pelo autor José Mário Brant, ed. Rocco.
            Aparentemente tudo começou porque professores de Vitória (ES) reclamaram sobre conteúdos que consideraram impróprios no livro. Por conta disso o delegado da DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente) também se queixou da obra. E as prefeituras de várias cidades do Espírito Santo estão recolhendo os livros das escolas. Tudo com grande repercussão na imprensa. Ou seja, na prática, o livro foi censurado, já que professores e crianças não mais terão acesso a ele.
            Vendo tanta polêmica, fui à biblioteca da escola onde trabalho para ler a obra. Para minha surpresa, descobri que o livro já está nas escolas desde 2005 (veja a foto da capa do livro com selo do PNBE), a diferença é que agora foi incluído também no acervo de uma das caixas de PNAIC. Só na minha escola 14 alunos já retiraram o exemplar antigo emprestado para ler em casa, e não houve ninguém reclamando de seu conteúdo desde então. Se o livro fosse potencialmente tão “perigoso”, creio eu que já teriam chovido reclamações, tendo em vista que ele está na escola há meros 12 anos.

Procedi, então, à leitura da obra. É uma coletânea de textos da tradição oral brasileira. O texto supostamente polêmico “A triste história de Eredegalda” é realmente muito triste. A protagonista é pedida em casamento pelo próprio pai, que diz que ela será sua rainha, e a mãe, a criada. Ante a recusa da moça, o pai a trancafia numa torre. A moça chora lágrimas de sangue dia e noite, pede ajuda aos três irmãos e à mãe, mas todos são ameaçados de morte pelo pai tirano, e ninguém ousa libertá-la. Ao fim, Eredelgarda morre sozinha na torre por não ter se sujeitado aos desejos do pai.
A história parece triste e bizarra? Uma deturpação dos contos de fadas? Se a ideia de que os contos de fadas podem trazer brutalidade apareceu absurda, vamos refrescar um pouco a memória, recorrendo aos contos em suas versões clássicas, antes de serem “amaciadas” para nossa sensibilidade moderna:
  • Tanto na versão de Grimm quanto na de Perrault, o lobo come a Chapeuzinho e a Vovó. Não tem nada desse negócio de se esconder dentro do armário e escapar do lobo voraz.
  • Ao final dos três porquinhos, ao tentar entrar na casa de tijolos pela chaminé, o lobo cai dentro da panela fumegante que os porcos, espertos, colocaram na lareira. Eles fazem um belo ensopado de lobo que comem com gosto.
  • Na Branca de Neve, a madrasta pede ao caçador que lhe traga as vísceras da menina. Ele estripa um porco e leva os órgãos, dizendo que são da menina, e a malvada faz com eles um ensopado com o qual se delicia, acreditando que devorava a enteada.
  • Na Cinderela, suas irmãs invejosas são punidas ao final da história por pássaros que perfuram seus olhos, deixando-as cegas.
  • No conto Pele de Asno a protagonista tem de se disfarçar com sujeira e a pele do animal para escapar das investidas de seu pai, como a Eredelgarda do livro de Brant.
Muita gente se surpreende ao saber que os contos de fadas da tradição oral são tão cruéis. Vale compreender que esses contos não foram, originalmente, criados para entreter exclusivamente crianças. Mas surgiram num tempo em que trabalhadores braçais enfrentavam todo tipo de mazela, talvez mais do que hoje, e ao final de um dia extenuante de trabalho, compartilhar essas histórias com pessoas de todas as idades era não apenas a única fonte de lazer, mas sobretudo uma forma de sobreviver, ao menos no imaginário, a uma dura realidade.
            Isso significa que os contos são impróprios para menores, e não devemos contá-los às crianças de hoje em dia? Muito pelo contrário. As crianças de hoje estão cercadas por muitos medos e tragédias. Reais e imaginários. Para algumas, pode ser o medo de perder-se dos pais, como João e Maria. Para outras, pode ser o medo de ter um pai tirano e abusivo, como Eredelgarda. Para outras ainda pode ser o medo uma bala perdida que mata até mesmo dentro de casa ou da escola. Se não contamos às crianças histórias que lhes dão uma chance de enfrentar e vencer o mal e o medo nem ao menos no plano imaginário, muito menos elas o enfrentarão no plano da realidade cotidiana. É por isso que histórias trágicas e de terror fascinam até hoje. (A quem desejar refletir mais sobre essas questões e a literatura infantil, deixamos ao final do texto uma listagem bibliográfica.)
            Mas nossa sociedade é capaz de causar rebuliço com um livro de literatura infantil distribuído pelo MEC, com a mesma facilidade com que se cala diante de milhares de crianças que sofrem abusos do todo tipo: espancamentos, castigos físicos e psicológicos humilhantes e até mesmo casamento infantil, exploração sexual de menores e pedofilia. A sociedade que se escandaliza com um livro permanece apática com escolas sem professores, merenda ou livros didáticos. A sociedade que se aterroriza com o mal representado nos contos de fadas deixa que crianças assistam às telenovelas e filmes fartos de erotismo e violência explícitos, ou divirtam-se com jogos violentos de videogame, ou que sejam presas fáceis de pedófilos assediadores via internet. Isso tudo enquanto as crianças estão SOZINHAS, sem a supervisão nem a mediação de nenhum adulto. Afinal, essas crianças modernas sabem se virar sozinhas, já nasceram tão inteligentes e sabem manusear um tablet ou smartphone antes mesmo de aprenderem a falar.
            Já os livros de literatura enviados para a escola não deixam a criança sozinha à sua mercê. Especialmente os livros do PNAIC, deveriam ser lidos para a criança por um adulto (a saber, o professor) capaz de mediar essa leitura. Esse adulto deveria ser capaz de avaliar como e quando é conveniente contar uma história, saber contextualizar a história social e culturalmente para a classe e ter escuta sensível das crianças que, ao ouvirem uma história, comumente se projetam nela e trazem à tona suas próprias vivências relativas a um tema. Um professor que seja assim capacitado pode perfeitamente ler para a classe um livro como “Enquanto o sono não vem”, ou qualquer outro que ele julgue adequado. Ou, como disse Brant em entrevista:
“Quando o contador sabe mediar a história, ela ganha outro aspecto. Há pouca capacitação em mediação. As pessoas acham que o material literário é o mesmo que didático, mas o literário é arte. Falta a capacidade de respeitar o universo dos contos e apresentá-los na hora certa ao público certo”.
            Adiante, Brant acrescenta ainda que “Foram milhões gastos em literatura para as escolas, não para os bolsos dos políticos. O PNAIC deveria mandar junto com os livros esse tipo de capacitação. Talvez o projeto esteja chegando pela metade, talvez falte mais informação. Se a gente for censurar Eredegalda, vamos censurar irmãos Grimm, Monteiro Lobato…”
                Realmente, talvez falte o MEC e às secretarias estaduais e municipais de educação dar um passo além da compra e distribuição de obras literárias para as escolas. Esse, e outros episódios semelhantes, mostram que não basta enviar bons livros às escolas, é preciso sempre investir na formação continuada dos docentes para que saibam como tirar o máximo proveito das obras recebidas.
Desde a década de 1990 o MEC vem promovendo cursos sobre alfabetização para professores da rede pública em todo o Brasil. Cursos nos quais a proposta é enfatizar a necessidade de alfabetizar letrando. Isto é, uma concepção em que a alfabetização vai além da decodificação de símbolos escritos, onde só podemos considerar que alguém é alfabetizado quando se torna um leitor crítico e proficiente numa diversidade textual. Mas talvez falte, para isso, as redes de ensino investirem mais na formação capacitar melhor os docentes no que concerne à literatura infantil e mediação de leitura, para além das metodologias e técnicas para ensinar a ler e escrever.
            Resta o questionamento, também, de por que criticar o modelo de seleção e compra de livros literários para as escolas via PNBE no atual momento. Como bem disse Brant, foram milhões gastos pelo Estado na aquisição de acervo literário, em vez de, quiçá, de obra superfaturadas. Mas vemos no mercado editorial notícias preocupantes também no que concerne à aquisição e distribuição de livros pelo PNBE.
(Veja texto completo sobre o tema em http://www.publishnews.com.br/materias/2017/05/11/mec-estuda-mudar-o-pnbe-uma-analisehttp://www.publishnews.com.br/materias/2017/05/11/mec-estuda-mudar-o-pnbe-uma-analise)
            Atualmente surgem críticas que de os livros enviados às escolas são supostamente “subutilizados”, porque ficariam encaixotados sem que os professores ou alunos os lessem. Por isso aventa-se a hipótese de que os livros não deveriam ser comprados para as bibliotecas escolares, mas que deveriam ser adquiridos para que os alunos os levassem para a casa.
            Para quem não se lembra, na da década de 1990, sob a gestão de Paulo Renato à frente do Ministério da Educação, houve um programa nesse formato, chamando “Leitura em minha casa”. Os alunos recebiam meia dúzia de livros, impressos na encadernação em brochura mais simples possível, com poucas ilustrações pequenas em preto em branco, ou mesmo sem ilustração alguma, para levarem pra casa. (Veja as fotos abaixo.) Os textos selecionados eram de autores já reconhecidos e consagrados, mas a qualidade da edição tirava quase todos os atrativos que um livro ilustrado tem como objeto capaz de atrair e encantar as crianças.


Além do que, as crianças levavam esses exemplares para lerem em casa sem a devida mediação de um bom professor. Supostamente, esse papel caberia às famílias. Mas, num país de analfabetos funcionais, será que essa mediação de leitura realmente ocorria em todos os lares? Onde a obra de literatura seria mais “subutilizada”, em casa ou na escola?
Além disso, temos também a questão da diversidade de textos oferecida aos alunos. Se eles levam meia dúzia de livros para casa, só terão acesso a esses textos. Se a escola dispõe de uma biblioteca com um bom acervo e os professores lêem para os alunos em sala de aula diariamente, as crianças terão acesso a 200 textos, uma vez que são 200 dias letivos no ano escolar. Se as crianças também puderem retirar diariamente livros empestados na biblioteca para lerem em casa, terão acesso a mais outros 200 textos. Não resta dúvidas e que, não apenas em termos de quantidade, mas também de qualidade, isso é muito mais produtivo para a formação do leitor do que ler apenas seis livros sozinho.

            Mas, se o modelo do “Leitura em minha casa” não parece ser muito eficiente para a formação dos leitores,já para a grande editora ele se mostra bastante lucrativo: Ela paga os direitos autorais para poucos escritores e ilustradores e produz uma edição de baixíssimo custo em preto e branco, mas onde se imprime e vende milhares de livros, pois cada aluno do ensino fundamental registrado no censo escolar receberá um kit de livros.
            Já no modelo atual do PNBE os livros não são adquiridos para serem entregues diretamente aos alunos, mas sim para as bibliotecas escolares o que, a princípio, diminui o número de livros impressos. No entanto proporciona muita diversidade, pois há três tipos de compras diferentes: Livros que são destinados diretamente para o acervo da biblioteca. Livros que são destinados para a caixa de livros do PNAIC, que devem ser lidos pelo professor para as classes de alfabetização e também podem formar um “cantinho da leitura” em sala de aula. Livros dos Acervos Complementares, que os alunos das classes de alfabetização levam emprestados para lerem em casa.
Esses livros são selecionados por especialistas em literatura infantojuvenil, geralmente através de parcerias do MEC junto às universidades públicas. As editoras enviam os livros a serem analisados, e eles passam por uma avaliação rigorosa não apenas da qualidade literária dos textos oferecidos, mas também da qualidade da edição final de um bom livro ilustrado (veja fotos abaixo). Para produzir livros assim, será necessário para as editoras contratar uma diversidade de autores, ilustradores e produzir obras com grande qualidade final de impressão.


Com a necessidade de enviar uma grande diversidade de textos, as editoras não poderão recorrer somente a textos clássicos de autores já consagrados, terão que investir para descobrir novos talentos. Isso também abre espaço não apenas para novos artistas, mas também para editoras pequenas que primem pela qualidade estética e literária em seus lançamentos.
            Comparando ambos os modelos, do “Leitura em minha casa” e do PNBE, faço as seguintes perguntas: Qual deles proporciona maior lucro às grandes editoras? Qual deles fomenta mais o mercado literário para a descoberta de novos autores e ilustradores? Mas, principalmente, qual deles proporciona aos alunos de nossas escolas públicas o acesso a uma bibliodiversidade maior, formando leitores verdadeiramente críticos e proficientes?
            O modelo do PNBE pode e deve ser sempre melhorado É possível e necessário buscar também a voz e a parceria dos professores da rede pública de ensino básico nesse processo. Afinal, são eles que estão lá na ponta e farão a mediação de leitura com as crianças. Ou que, talvez por deficiências de formação docente e também de gestão escolar, deixem os livros sem uso. Talvez os livros por vezes fiquem encaixotados também porque são poucas as escolas públicas que dispõem de infraestrutura física e pessoal qualificado para terem uma biblioteca escolar em pleno funcionamento. Mas esses não são motivos para retroagir a modelos que já fracassaram anteriormente. Pelo contrário, deveríamos avanças no fomento às bibliotecas escolares, se quisermos um dia ser uma nação de leitores.
            O que não podemos é reagir com alarmismo e censura aos livros selecionados e enviados para as escolas. Se um livro a princípio parece inadequado, em lugar de promover prejulgamentos açodados, com base apenas em valores pessoais e sem embasamento teórico e científico, seria recomendável refletir e pesquisar sobre o tema proposto, ampliando a visão crítica sobre a literatura infantojuvenil.
            O alarmismo pode colocar em risco programas que só visam enriquecer o processo de alfabetização dos alunos de nossas escolas públicas, cedendo argumentos a quem queira acabar com eles ou substituí-los por programas retrógrados. A censura em nada contribui para a formação das crianças, uma vez que varrer temas aparentemente complexos e polêmicos para debaixo do tapete, em vez de procurar maneiras adequadas de dialogar sobre eles junto às crianças não faz com que esses temas deixem de existir. Mas, pelo contrário, não dá voz às suas possíveis vítimas e as deixa sofrendo sozinhas.
SOBRE A AUTORA
Taicy Ávila é Pedagoga, especialista em Psicopedagogia e Mestre em Psicologia (Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde). É professora da rede pública do DF, contadora de histórias e atua em biblioteca escolar.
SUGESTÕES DE LEITURA
LITERATURA INFANTIL E ESCOLARIZAÇÃO
  • “Literatura Infantil: gostosuras & bobices”, Fanny Abramovich, ed. Scipione.
  • “O que é literatura infantil?”, Lígia Cadermatori, ed. Brasiliense.
  • “Problemas da literatura infantil”, Cecília Meireles, ed. Global.
  • “Literatura infantil: teoria, análise, didática”, Nelly Coelho Novaes, ed. Ática.
  • “O conto de fadas”, Nelly Coelho Novaes, ed. Ática.
  • “Como um romance”, Daniel Pennac, ed. Rocco.
  • “A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil”, Ilan Brenman, ed. Aletria.
  • “Através da vidraça da escola: formando novos leitores”, Ilan Brenman, ed Aletria.
PSICANÁLISE E LITERATURA

  • “A psicanálise dos contos de fadas”, Bruno Bettelheim, ed. Paz e Terra.
  • “Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem”, Clarissa Pinkola Estés, ed Rocco.
  • “Em defesa do faz de conta: preserve a brincadeira num mundo dominado pela tecnologia”, Susan Linn, ed. Best Seller.
  • “Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade”, Celso Gutfreind, ed. Difel.
  • “O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia da criança”, Celso Gutfreind, ed. Casa do Psicólogo.
  •  “A infância através do espelho: a criança no adulto, a literatura na psicanálise”, Celso Gutfreind, ed Artemed.
  •  “Fadas no divã”, Diana Corso e Mário Corso, ed. Artmed.
  • “A psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, Diana Corso e Mário Corso, ed. Artmed.

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